“Diz-me que liberdade de reunião e de manifestação praticas no teu país
e dir-te-ei que democracia alcançaste”. Com essa frase, António Francisco de
Souza, um dos grandes estudiosos desse tema em Portugal, iniciou sua palestra
na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, em setembro de 2012,
já ressaltando, de pronto, que, sem liberdade de reunião e de manifestação, não
há democracia de fato.
Nas últimas semanas, diversos protestos eclodiram nas ruas
brasileiras. O povo, basicamente mobilizado por meio de redes sociais,
reuniu-se em várias cidades do Brasil para requerer melhorias na área de saúde,
política, educação. Esse “acordar de um Gigante” foi largamente associado ao
fortalecimento de nossa democracia, e a boa finalidade de tais marchas
aparentemente justificou o bloqueio de grandes avenidas — com o consequente
caos no trânsito — e outras perturbações da ordem pública.
O direito fundamental de liberdade de reunião vincula-se de forma direta
à liberdade de expressão, mais precisamente à de manifestação. Nosso texto
constitucional assegura a liberdade de manifestação de pensamento, vedando o
anonimato (artigo 5º, inciso IV, da
Constituição) e garante que “todos podem
reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público,
independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião
anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à
autoridade competente” (artigo 5º, inciso XVI, CF). Destes dois incisos é
possível depreender que a liberdade de reunião e de manifestação não são
direitos absolutos, mas possuem restrições impostas pelo constituinte, além das
que resultam da colisão com outros direitos ou valores constitucionalmente
protegidos.
É importante definir, em primeiro lugar, o objeto do direito fundamental
à liberdade de reunião. Este pressupõe um agrupamento de pessoas, que possua um
mínimo de coordenação (finalidade comum e consciente) e que seja passageiro,
transitório — caso contrário, seria uma associação. Um mero ajuntamento
ocasional ou fortuito, como a concentração de pessoas em torno de um acidente
de trânsito ou o público de um concerto musical não se enquadram, em princípio,
no conceito de reúne.
A liberdade de reunião também abrange as vertentes da liberdade de
convocação (por exemplo, a criação de páginas com esse propósito noFacebook),
de promoção, de participação em reuniões (liberdade positiva) e a liberdade de
não manifestação (liberdade negativa).
O caráter pacífico tem relação
com o estado de tranquilidade ou a ausência de desordem. Não é qualquer
perturbação, contudo, que permite a intervenção estatal para impedir a
realização da reunião como um todo. Pequenas ocorrências podem ser consideradas
aceitáveis e até mesmo “naturais” nos ajuntamentos de muitas pessoas.
Em manifestação ocorrida recentemente no Rio de Janeiro, a marcha
pacífica de milhares de pessoas pela Avenida Rio Branco foi transmitida ao vivo
pela televisão. Ao final, já um pouco separados do grande grupo, criminosos
aproveitavam para realizar saques e destruir bens públicos. Apenas contra esse
tipo de minoria é que deve haver intervenções pontuais, não apenas para
garantir a segurança pública, mas também dos demais participantes da reunião.
No Brasil, o caráter de licitude da reunião é considerado seu requisito
pela doutrina e pela jurisprudência, ainda que não mencionado expressamente no
texto constitucional. Do ponto de vista penal, é certo que vale o princípio de
que ninguém pode executar, em uma reunião, algo que seja proibido fora dela.
As autoridades públicas, ao
perceberem que uma reunião está sendo utilizada para fins ilegais, têm o dever
e o direito de interrompê-la, afastando a ocorrência do ilícito. A reunião
poderá, se possível, prosseguir regularmente após essa intervenção. Fernando
Dias Menezes de Almeida ressalta que, em se tratando de atitudes ilícitas
realizadas em uma reunião, não há de se falar em colisão de direitos, mas, sim,
de tipificação de conduta delituosa.
A proibição de qualquer manifestação deve ser baseada em razões
fundadas. Nesse aspecto, a doutrina italiana entende que não é suficiente a
simples menção ao perigo de alteração da ordem pública ou possível agressão a
bens protegidos.
Tal fundamentação, por ser complexa, faz com que seja difícil o
estabelecimento de regras gerais sobre limites à liberdade de expressão. É
necessário, por conseguinte, analisar-se o caso concreto.
Essa avaliação torna-se mais difícil quando inexiste regulamentação
infraconstitucional com clara definição dos limites básicos da liberdade de
reunião, como há, por exemplo, na Alemanha. Por aqui, o texto constitucional impõe
duas restrições ao direito de reunião: que um encontro não frustre outro,
anteriormente agendado para o mesmo local, e que a reunião seja previamente
avisada à autoridade competente.
Do direito estrangeiro, válido mencionar a Lei sobre reuniões e
manifestações da Alemanha (Versammlungsgesetz), de 1978, que
regulamenta o artigo 8º da Lei Fundamental. Seu parágrafo 1a dispõe que todos
têm o direito de organizar e de participar de reuniões e de manifestações
públicas, exceto partidos inconstitucionais, que tenham o objetivo de eliminar
a ordem fundamental livre e democrática ou por em perigo a existência da
República Federal da Alemanha, cabendo ao Tribunal Constitucional Federal
apreciar tal questão. Também militares e prestadores de serviço civil ou
militar, nos termos da legislação castrense, não possuem direito de reunião, de
acordo com a Lei Fundamental (artigo 1
O texto legal alemão divide as reuniões entre as públicas
realizadas em ambientes fechados e as públicas realizadas em ambientes abertos.
Para estas, o organizador da manifestação deverá comunicar sua realização em
até 48 horas antes do evento. As autoridades competentes poderão proibir a
manifestação — ou especificar condições para sua realização — caso se verifique
que a reunião poderá ser perigosa para a segurança pública. Há proibição
expressa para manifestações realizadas em memoriais ou locais históricos e de
especial significado às vítimas do holocausto. A lei ressalta que o Memorial do
Holocausto, localizado em Berlim, inaugurado em 2007 e famoso por seus
expressivos blocos de concreto, enquadra-se em tal proibição. Quando não
cumpridos estes requisitos ou a manifestação destes se desviar, as autoridades
podem interrompê-la.
Outro ponto bastante polêmico, por ser considerado uma forma de
intimidação, é a filmagem de manifestantes pelos policiais. Sobre isso, a Lei
sobre reuniões e manifestações especifica que a filmagem dos
participantes somente é legal quando existam evidências reais que a justifiquem
e que o manifestante represente risco significativo. A gravação deve ser
apagada logo após o evento, exceto nas hipóteses em que prove a ocorrência de
algum delito ou seja possível acreditar que algum participante poderá ser
perigoso em manifestações futuras.
Em 2006, por meio da denominada Reforma Federativa, que alterou diversos
dispositivos da Lei Fundamental, a competência para legislar sobre liberdade de
reunião e de manifestação foi transferida da União aos Estados. O artigo 125a,
inciso I, LF determinou que, para este caso, continua válida a lei federal, mas
os estados podem substituí-la por leis locais. Com isso, alguns Länder já
possuem leis próprias sobre o assunto, como a Bavária, que promulgou o Bayerisches
Versammlungsgesetz em 2008.
Por aqui, não temos diploma legislativo federal completo e
específico que regulamente o direito de reunião. O tema é tratado por poucos e
esparsos dispositivos, como pela legislação eleitoral. A primeira e única lei
sobre liberdade de reunião no Brasil data de 1950 (Lei 1.207). Promulgada na
vigência da Constituição de 1946, essa lei nunca foi revogada expressamente,
mas muitos dos seus dispositivos certamente não são compatíveis com a atual
ordem constitucional.
Para organização funcional do
direito de reunião, diversos Estados possuem portarias que especificam qual
órgão é competente para recebimento do aviso prévio. Disposições sobre este
tema também são encontradas em leis municipais que dispõem sobre reuniões que
possam afetar a circulação e qual órgão será competente para acompanhá-las.
O Decreto 20.098, de 1999, do Distrito Federal foi objeto de análise
pelo Supremo Tribunal Federal na ADI 1.969. O decreto impugnado proibia a utilização
de carros de som ou assemelhados em manifestações públicas realizadas na Praça
dos Três Poderes, na Esplanada dos Ministérios e na Praça do Buriti. A
restrição foi considerada inconstitucional, já que a alegação de que o barulho
atrapalharia a atividade laboral dos servidores que trabalham nesta região é
“inadequada, desnecessária e desproporcional quando confrontada com a vontade
da Constituição”. No julgamento, chegou a ser ressaltado que situação outra
seria a realização de manifestações com carro de som na frente de hospitais, e
que a proibição, na forma apresentada no decreto, serviria para “emudecer” o
povo.
Um direito que usualmente entra em conflito com a liberdade de reunião é
a liberdade de locomoção. O bloqueio de grandes vias tornou-se comum nas
últimas semanas. A Avenida Paulista, em São Paulo, que é uma das principais
vias da cidade e abriga diversos hospitais e clínicas médicas por suas
proximidades, é um claro exemplo disso. Presas no trânsito, pessoas que não conseguiram
chegar ao trabalho, perderam voos e compromissos
É de se considerar, finalmente, a elaboração de lei federal que defina
limites essenciais à liberdade de reunião, como a necessidade de prévia
indicação de qual percurso será feito, seu horário de realização, a proibição
de interrupção total de vias públicas ou a autorização para que ocorra em
determinados horários ou dias. O mero estabelecimento de regras procedimentais
básicas ao exercício do direito de reunião não significa sua limitação, apenas
garante que o evento se realize de forma segura não apenas aos seus
participantes, mas a todos os cidadãos por ela diretamente afetados.
A liberdade de expressão, em suas variadas vertentes, é essencial para a
manutenção do regime democrático. Especialmente quando demonstrada por meio de
reuniões e de manifestações, auxilia o desenvolvimento da consciência dos
cidadãos, que passam a ter acesso a novas informações, podem externar o que
pensam, o que desejam para o país. As manifestações instigam o debate de temas
polêmicos pela sociedade. Qualquer espécie de censura injustificada à liberdade
de reunião deve ser reprimida, assim como qualquer abuso ou crime cometido por
seus participantes. E é o bom senso, baseado nos princípios da
proporcionalidade e da razoabilidade, que deve prevalecer na análise concreta
de cada situação.
[1] Apresentação
publicada na revista Direitos Fundamentais e Justiça, ano 6, nº 21, p. 27-38,
out dez 2012.
[2] Conferir
MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Tomo IV. Direitos
Fundamentais. Coimbra: Coimbra Editora, 1993. p. 428.
[3] SOUZA,
António Francisco de. Liberdade de Reunião e de Manifestação no Estado de
Direito. In: Direitos Fundamentais e Justiça, ano 6, nº
21, p. 27-38, out dez 2012P. 31 antonio
[4] BRANCO,
Paulo Gonet; MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. São
Paulo: Saraiva, 2011.
[5] TORRES
MURO, Ignacio. El derecho de reunion y manifestacion.Madrid:
Servicio de publicaciones de la Facultad de Derecho de la Universidad
Complutense,1991, p. 96.
[6] ALMEIDA,
Fernando Dias Menezes de. Liberdade de Reunião. São Paulo: Max
Limond, 2001, p. 187.
[7] TORRES
MURO, Ignacio. Op. cit., p. 136.
[8] Art.
8º, Lei Fundamental: (1)Todos os alemães têm o direito de se reunirem pacificamente
e sem armas, sem notificação ou autorização prévia.(2) Para as reuniões ao ar
livre, este direito pode ser restringido por lei ou em virtude de lei.”
[9] Por
exemplo, art. 39, §1º, Lei n. 9.504, de 1997: “Art. 39. A realização de
qualquer ato de propaganda partidária ou eleitoral, em recinto aberto ou
fechado, não depende de licença da polícia. § 1º O candidato, partido ou
coligação promotora do ato fará a devida comunicação à autoridade policial em,
no mínimo, vinte e quatro horas antes de sua realização, a fim de que esta lhe
garanta, segundo a prioridade do aviso, o direito contra quem tencione usar o
local no mesmo dia e horário.”
[10] ALMEIDA,
Fernando Dias Menezes de. Op. cit., p. 107.
[11] ALMEIDA,
Fernando Dias Menezes de. Op. cit., p. 270.
[12] ADI
1969, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgamento em 28.6.2007
FONTE; http://www.conjur.com.br/2013-jul-06/observatorio-constitucional-restringir-manifestacoes-nao-inconstitucional#_ftnref10_7188
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